Semelhanças, influências ou
apropriações
apropriações
Uma das características mais chamativas do trabalho de Tim Burton é que nele é possível encontrar diversas características desenvolvidas ao decorrer da história do cinema, provenientes de variadas épocas, movimentos e escolas. Com o objetivo de facilitar o seu estudo, a história cinematográfica foi dividida em correntes e escolas que se organizam de acordo com avanços técnicos, tipos de linguagem e estilos de expressões cinematográficas. As divisões periódicas mais disseminadas e aceitas pelos estudiosos do cinema são: o primitivo, o clássico, as vanguardas, o moderno e, finalmente, o pós-moderno que também é chamado de contemporâneo ou, em alguns casos, maneirista. Algumas destas divisões temporais mostram essas correntes como algo que existiu apenas em um período histórico específico, mas é importante ter em mente que um movimento não precisa cessar sua existência para que outro aconteça. O hibridismo do cinema pós-moderno é exemplo disso – por ser tão recente, encontra-se dificuldade em defini-lo causando polêmica entre os pensadores e críticos atuais que ainda não são capazes de classificar o cinema da atualidade, principalmente, por não ter o distanciamento temporal necessário para uma análise mais ‘científica’ dessa corrente. Esta, no entanto, é uma discussão que está fora dos objetivos e pretensões deste projeto e, portanto, é baseando-se na divisão mais comum que seguirão as comparações deste trabalho.
Uma característica latente no cinema atual é que ele não tem o objetivo de romper com nenhum dos movimentos pré-existentes, ao contrário, ele se torna uma união de todas as correntes anteriores, dialogando com vários aspectos desenvolvidos pela linguagem cinematográfica ao longo de sua história, sendo eles estéticos, técnicos ou narrativos. O rompimento do pós-moderno é única e exclusivamente com as normas, com o que separa uma escola de outra, ele é uma interseção de todas as correntes sem se limitar a uma específica. O cinema da atualidade é um terreno fértil para a combinação, contraposição, permutação e descontextualização de diversos elementos situados em variados segmentos espaços-temporais.
Segundo Ferraraz (2001), baseando-se em Jameson, “o pósmoderno se caracteriza por um ecletismo muito grande de estilos, de formas, de paradigmas, numa arte que trabalha com estruturas esquizofrênicas” (FERRARAZ, 2001:4). Afirmar que Tim Burton é um artista pós-moderno significa que ele é produtor de um cinema pluralista, que segue uma arte que não nega o passado, pelo contrário, se apropria dele para criar o novo. Na arte pósmoderna, o que já foi feito é reaproveitado sob uma nova ótica e forma de criação, ou seja, no cinema, é aquele que arrebanha todas as escolas passadas e, a partir delas, produz um novo em uma espécie de pastiche.
Segundo Dubois (2004), na década de 1980, o que se observa em diretores, tais como Francis Ford Coppola, Peter Greenaway, Lars Von Trier, Raoul Ruiz e diversos outros, é o verdadeiro “cinema do depois”, feito por quem tem a nítida consciência de ter chegado logo após a criação de um ideal de perfeição, quase como se todas as possibilidades de experiência e inovação já estivessem esgotadas. O desafio, colocado para o autor de cinema hoje, é como filmar algo de forma diferente do que já foi feito, e ainda, a questão de qual objeto filmar. Assim, pode-se dizer que a história do cinema se torna um peso para o autor cinematográfico contemporâneo que é desafiado por ela em todo momento de criação. No entanto, sob outra perspectiva, ela pode se tornar uma infindável fonte de inspiração.
Da mesma forma que um cientista se torna mais apto a realizar pesquisas na medida em que aumenta seu conhecimento teórico, um artista aumenta suas possibilidades criativas ao conhecer mais sobre sua arte. É claro que esta analogia não implica que a criação artística siga os modelos do processo científico, até porque, o sistema cartesiano – tradicionalmente utilizado nas ciências – não tem espaço na arte hoje, principalmente após tantos movimentos do século XX nos quais artistas, como Marcel Duchamp, lutavam contra a ditadura binária do belo e do feio, o bom e o ruim, o certo e o errado – atualmente o processo começa a ser questionado até mesmo pelos próprios cientistas. Esta comparação é apenas uma forma de tornar mais fácil a compreensão do acréscimo de possibilidades através do conhecimento, ou seja, o artista torna-se capaz de se apropriar de certas características por ele vistas e, a partir delas, se inspirar, criando algo único. É através deste hibridismo contemporâneo que Burton explora suas capacidades criativas, re-moldando elementos já utilizados e transformando-os com a sua personalidade e gênio criativo. Sua estética visual, por exemplo, possui características específicas, perceptíveis até para o olhar mais desatento, o que torna possível a identificação de seu gesto autoral.
Cineasta inclasificable y libre de prejuicios, Tim Burton ha desarrollado a lo largo de su carrera cinematográfica un catálogo de películas que en nada parece seguir los cánones comerciales que imperan en el cine manufacturado en serie en los Estados Unidos. Iniciado como animador en la todopoderosa Disney y siempre ligado a los grandes productores americanos, ha conseguido desarrollar su propia y original forma de hacer cine. Director de culto para algunos, incapaz de contar una historia de forma visual para otros, lo cierto es que en Burton encontramos uno de los mejores ejemplos de lo que se ha dado en llamar 'autoría posmoderna', etiqueta donde se engloban cineastas como los hermanos Cohen, Tarantino, Cronenberg o David Lynch. (ARZA, 2004)
Sob o olhar da estética de Burton, podemos encontrar similaridades com aspectos visuais de algumas das chamadas vanguardas cinematográficas. Estas vanguardas são resultados de uma interação desenvolvida, no início do século XX, entre o cinema produzido e a ascensão de vanguardas artístico-literárias. Tratava-se de um questionamento radical dos valores estéticos tradicionais burgueses e procurava, entre outras coisas, atribuir novas funções à linguagem artística recorrente, explorando caminhos de representação que o próprio cinema viabilizava, buscando possibilidades, experimentando os limites desta mídia e tentando se distanciar da ditadura fílmica que começava a aparecer nos EUA. Um dos principais traços dessas vanguardas é o desejo de exibir algo além da visão considerada normal, extrapolar os significados dos objetos e dos acontecimentos percebidos pelo olhar humano, dando significações além do comum enraizado na percepção. Entre estes movimentos, o surrealismo e o expressionismo alemão são os que ganham maior destaque ao analisar a obra de Burton.
Os surrealistas exploraram as associações de imagens, fantasmas eróticos e as pulsões revolucionárias, representados na época principalmente pelo cineasta Luís Buñuel e o artista Salvador Dalí. A estética surrealista se baseou na transformação de sonhos em imagens, o filme “Um cão andaluz” (Un chien andalou, 1928), realizado em parceria por Buñuel e Dalí, por exemplo, lança a proposta de uma narração que não obedece a uma ordem ou lógica, que cultiva as rupturas, o onirismo, as imagens mentais, a confusão entre subjetividade e objetividade. Neste sentido, Tim Burton opta pelo caminho contrário, mantendo sempre a linearidade no enredo ao contar suas histórias. O cineasta Federico Fellini (s.d.), diz que:
Falar sobre sonhos é como falar sobre filmes, já que o cinema usa a linguagem dos sonhos; anos podem passar em um segundo e você pode pular de um lugar ao outro. É uma linguagem feita de imagem. E no cinema de verdade, todo objeto e toda luz possui um significado, assim como nos sonhos.
O meio cinematográfico, portanto, oferece ao artista – além da possibilidade de compartilhar imagens mentais – o mesmo tipo de desprendimento existente nos sonhos, viabilizando a criação de uma realidade suspensa, flexível, composta por mundos alucinados sem qualquer tipo de obrigação com a realidade. Consciente disto, Burton se aproveita desta possibilidade oferecida pelo cinema para criar atmosferas preenchidas por elementos extraordinários e criaturas fantásticas livres da maioria das restrições físicas impostas pela vida real, explorando possibilidades imagéticas, que, se não existissem os filmes, só poderiam existir se sonhadas ou imaginadas.
A fuga da realidade também é marca do expressionismo alemão, que “teve sua realização definitiva por intermédio de uma nova arte, o domínio da imagem em movimento, que deu vida a um mundo paralelo, povoado por visões subjetivas, misteriosas agitações do inorgânico e profecias inquietantes sobre uma nova era” (RUBINATO, 2006). “O Gabinete do Dr. Caligari” (Das Kabinett des Doktor Caligari – 1919), de Robert Wiene, é um marco dessa vanguarda, cujo traço mais marcante é a oposição à verossimilhança. A maquiagem, as roupas e o desempenho dos atores, com movimentos e expressões exageradas, participam na instalação de um universo fictício, inquietante, com cidades labirínticas e de criaturas estranhas. Visualmente, características da arte gótica tomam lugar em cena, enriquecem e caracterizam o estilo estético do movimento. Burton, como ele próprio afirma diversas vezes, tem um fascínio por esses elementos obscuros, estranhos e bizarros. Seus filmes e seus personagens, principalmente seus monstros, têm características exageradas, visuais expressivos que chocam individualmente, mas que são peças comuns dentro do contexto narrativo e não possuem uma conotação absurda. Um humor sombrio e sarcástico pode ser sempre percebido em seus filmes, uma característica que desconstrói os significados de senso comum e maniqueísta, freqüentemente atribuídos aos monstros.
Para a formação dessa expressão em cena, Burton valoriza um aspecto do cinema mudo: a capacidade do ator de se comunicar sem usar palavras. Ao comentar sobre a seleção de seus atores, repetidamente, afirma que precisa da qualidade de cinema mudo, a expressividade de uma cena na imagem e não no texto. Segundo Burton (2003), um diálogo, algumas vezes, fala muito sem dizer nada. Quando perguntado por Maxwell Bridiay sobre os comentários de alguns críticos que afirmam que ele não sabe contar histórias e faz filmes apenas com apelo visual, Burton responde que o cinema é um meio visual, “há muitas formas diferentes de apresentar as coisas. Para mim, quanto mais formas para apresentar, melhor” (Informação verbal).
Seguindo para o aspecto narrativo das histórias, o diretor mantém características que são remetidas ao cinema clássico: a linearidade, a lógica e a clareza. O encadeamento das cenas e das seqüências do clássico se desenvolvia de acordo com uma dinâmica de causas e efeitos clara e progressiva. A narrativa centrava-se em geral num personagem principal ou em um casal (de caráter bastante definido), enfrentando diferentes situações de conflito. O desenvolvimento levava o espectador às respostas das questões colocadas pelo filme. Nesse aspecto, Burton mantém sua obra basicamente sob a narrativa clássica. Suas histórias possuem um caráter linear lógico, os enredos são claros e diretos (sem nenhuma pretensão de confusão temporal) e um herói central que é acompanhado durante o filme.
O cineasta D. W. Griffith – responsável por criar, no cinema, a chamada narrativa clássica, utilizada até hoje pela maioria dos filmes –, foi profundamente influenciado por romances dos escritores Charles Dickens e Fiodor Dostoievski. Segundo Guimarães (1997), a narração fílmica clássica carregava a marca das grandes formas romanescas do século XIX – É interessante ressaltar que, além desta forte influência inicial, a literatura ainda se mostra muito presente no cinema ao inspirar assuntos, histórias e idéias dos filmes, principalmente, quando estes são baseados em obras literárias. Na própria filmografia de Tim Burton temos exemplos de adaptações de romances e contos: “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (Big Fish, 2003) teve seu roteiro baseado em um romance de Daniel Wallace; “Edward Mãos de Tesoura” (Edward Scissorhands, 1990) em um conto escrito pelo próprio Burton; “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (Charlie and The Chocolate Factory, 2005) é originalmente um livro infantil de Roald Dahl; e “A Noiva-Cadáver” (Tim Burton’s Corpse Bride, 2005) foi baseado em um conto popular russo.
Sobre a narrativa clássica, então, foi Griffith que, utilizando-se de critérios literários, introduziu no cinema a idéia de uma continuidade, definiu novos parâmetros como a decupagem, a montagem, a escala de planos e as relações entre o espaço, cenário, narrativa e som. A continuidade clássica gerou a constante homogeneização do significante visual (cenários, iluminação) e do significado narrativo (as relações legendas – imagens, o desempenho dos atores, a unidade do roteiro, a história, o perfil dramático e a tonalidade de conjunto), depois do significante audiovisual (sincronismo da imagem e dos sons – palavras, ruídos, música). A introdução da linearidade – modo pelo qual um plano se vincula ao plano seguinte – despertou também o vínculo ao movimento (no gesto de um personagem ou no movimento de um veículo), o vínculo ao olhar (um personagem olha / enxerga-se o que ele enxerga) e o vínculo ao som (ouve-se um ruído em um plano, identifica-se sua fonte no plano seguinte).
Todas essas técnicas criadas pelo cinema clássico têm um único objetivo: fazer com que o espectador se esqueça do caráter descontínuo do significante fílmico, constituído de imagens coladas umas sobre as outras. São elas as responsáveis por proporcionar a sensação de realidade experimentada pelo espectador que assiste ao filme com a impressão de estar participando de eventos reais e testemunhando partes da vida de alguém. É esta característica hipnótica e ilusionista do cinema que é responsável por envolver o espectador no ambiente fílmico e fazê-lo esquecer-se de que o que está sendo projetado foi na verdade criado, pensado, cortado e novamente remontado antes de chegar à tela.
Este invólucro que faz o espectador se perder nesse mundo fictício remete a outra qualidade do cinema: a magia. No surgimento do meio cinematográfico, ele possuía basicamente duas expressões: a documentação da realidade ou o ilusionismo. Esse segundo é o que nos interessa ao falar de Tim Burton. Em 2001, Burton disse: “parte do que eu gosto sobre o meio cinema é que existe algo místico nele. Quando o cinema apareceu pela primeira vez, as pessoas não sabiam como era feito e isso dava uma qualidade mágica aos filmes” (Informação verbal)8. A experimentação visual e exploração dos efeitos ilusórios possibilitados pelo cinema foram inicialmente explorados pelo mágico Georges Mèliés que, após a primeira exibição cinematográfica9, demonstrou interesse pela nova técnica e, através de experimentações, passou a produzir filmes que, além de registros documentais de seus números de magia, também exibiam técnicas de efeitos especiais. Seu filme mais famoso, “Viagem à Lua” (Voyage dans la lune, 1902), foi a primeira ficção científica da história do cinema e utilizava elementos fantásticos e lúdicos, através dos efeitos especiais descobertos e desenvolvidos por ele. Neste sentido, o trabalho de Burton se aproxima especialmente com o trabalho do mágico francês: da mesma forma que Mèliés seduzia seu público com elementos de magia, Burton exibe um reino de fantasia.
Segundo Pommer (2003), “a disponibilidade que o espectador manifesta de ser enganado decorre do fato de que ele entra num cinema (...) para recuperar o contato com um certo estado de coisas que nele produza emoções”. É sob essa atmosfera da ilusão que Burton envolve seus espectadores e busca a produção de emoções mostrando em seus filmes o que na vida real seria impossível e, misturando acontecimentos prováveis com elementos absurdos, constrói um mundo de significados reconhecíveis e criaturas inusitadas.
Além disso, é importante dizer que Burton se encontra diversas vezes com a história do cinema, apropriando-se e recriando cenas filmadas por diretores que vieram antes dele. Em “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (Charlie and the Chocolate Factory, 2005), por exemplo, é possível perceber uma referência direta ao clássico filme “2001: Uma Odisséia no Espaço” (2001: A Space Odyssey, 1968). A seqüência dentro da sala de TV da fábrica, além de exibir algumas cenas do filme de Stanley Kubrick, apresenta o chocolate da mesma forma que o importante monólito negro do filme de 1968. A trilha sonora também vale ser mencionada, já que, na seqüência, é a mesma do clássico de Kubrick.
Outro exemplo é “Marte Ataca!” (Mars Attacks!, 1996), no qual o diretor empenha-se em homenagear os filmes que fizeram parte de sua infância. Além de uma cena cômica dos alienígenas assistindo ao “Godzilla” (Gojira, 1954) na TV, o filme é preenchido por pequenos detalhes que lembram alguns dos filmes lado b que Burton destaca como seus favoritos na juventude (como já foi mencionado no capítulo I): os humanos, ao serem atingidos pelas armas dos marcianos, transformam-se em esqueletos agonizantes que se movimentam lembrando os soldados mostrados em “Jasão e o Velo de Ouro” (Jason and the Argonauts, 1963) e as naves dos extraterrestres são uma versão um pouco mais atualizada das naves apresentadas por Ed Wood no filme “Plan 9 From Outer Space” de 1959. Poderíamos também considerar como uma referência a “The Brain that Wouldn’t Die” de 1962, a seqüência na nave alienígena em que Nathalie (Sarah Jessica Parker) e Kessler (Pierce Brosnan) são submetidos a experiências e perdem o corpo, sendo que suas cabeças continuam com funcionamento normal. Ao colocar todas estas homenagens em seus filmes, Burton, além de se mostrar conhecedor do meio em que trabalha, ainda demonstra um respeito à memória do cinema.
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